Espelho quebrado II: a árdua luta pelo reconhecimento dos direitos humanos

Por Ana Vitória Sampaio*

2013-04-10-feliciano-cdhm

Em meados de 2011 apresentei no XXVI Simpósio Nacional de História, realizado pela Anpuh, o trabalho Espelho quebrado: O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) avaliado pelos tefepistas, sob orientação da Profª Drª Gizele Zanotto (UPF), a quem muito estimo. Nesse artigo trabalhei com a visão da Tradição, Família e Propriedade (TFP) sobre a agenda dos direitos humanos no Brasil, focalizando as suas articulações com os PNDH’s.

Esse artigo estava esquecido entre os meus – ainda poucos – trabalhos acadêmicos publicados, e nessa madrugada o reencontrei entre arquivos esquecidos do computador. Esse reencontro me fez lembrar questionamentos importantes que servem para o momento atual. Apesar das discussões sobre a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados estarem focadas na atuação da Bancada Evangélica do Congresso, há aspectos muito semelhantes com as críticas que fiz anos atrás sobre a TFP, um movimento católico conservador que foi, inclusive, um dos grandes críticos do crescimento evangélico no país. Contudo, apesar dos pontos de divergência entre católicos e evangélicos¹, sendo eles conhecidos inimigos históricos pela monopolização da fé cristã, é possível notar uma aproximação discursiva quando se trata da defesa da tradição.

Aqui quero dar um sentido mais amplo ao tradicionalismo, sem creditá-lo à apenas um segmento religioso. A defesa pela família nuclear patriarcal, o modelo mais validado como ideal a ser seguido pela sociedade, pode ser vista como um aspecto dessa tendência, partilhada tanto por católicos quanto por evangélicos. Sabe-se que a Marcha da Família, organizada pelo pastor Silas Malafaia em 2011 como um ato de repúdio ao PLC. 122, foi visitada, também, por segmentos católicos e leigos, completamente estranhos aos cultos das igrejas pentecostais. Nesse episódio presenciamos uma postura um tanto quanto rara, mas que vem se tornando cada vez mais recorrente: inimigos históricos se tornam aliados contra uma ameaça comum. Se essa amizade durará para sempre ou se é uma exceção estratégica, não sabemos. Mas tais acontecimentos são dignos de destaque.

No meu artigo de 2011 trabalhei sobre a alteridade, apresentando o seguinte questionamento antes feito por Lynn Hunt: “Como podem os direitos humanos serem universais se não são universalmente reconhecidos?” (HUNT, 2009: 18). Talvez seja esse o maior problema para a garantia dos direitos humanos no Brasil e no mundo. Parte da revolta existente contra Marco Feliciano (PSC/SP) à frente da CDHM está relacionada à postura que o deputado vem apresentando contra grupos historicamente oprimidos. Seus posicionamentos podem ser traduzidos como negação àqueles que foram identificados como inimigos da tradicional família brasileira. E se em algum momento os direitos humanos visam contemplar a segurança desses grupos tão combatidos, eles próprios tornam-se indignos de reconhecimento. Como afirmado por Emmanuel Levinás:

Salvo para outrem. Nossa relação com ele consiste certamente em querer compreendê-lo, mas esta relação excede a compreensão. Não só porque o conhecimento de outrem exige, além de curiosidade, também simpatia ou amor, maneiras de ser distintas da contemplação impassível. Mas também porque, na nossa relação com outrem, este não nos afeta a partir de um conceito. Ele é ente conta como tal. (LEVINÁS, 1997:26)

Para haver o reconhecimento do outro, é preciso diálogo, troca e empatia. Ontem, 10/04/2013, pude comprovar essa dificuldade. Em mais um protesto contra a CDHM tive a oportunidade de conversar com um evangélico militante pró-Feliciano – oportunidades que só o ativismo concede. Se eu me limitasse ao debate acadêmico, dificilmente isso aconteceria. O homem era bastante simpático e sorridente, em momento algum foi hostil, mas não conseguia dialogar fora da ótica religiosa. Enquanto meu raciocínio estava baseado em um ideal de mundo secular, o dele estava voltado para o alto. E quando uma entidade metafísica como Deus é chamada para a conversa, o ser humano, feito do pó, a este retorna. Apesar de todo o amor por mim declarado, baseado na lógica agostiniana “eu amo você, só não concordo com a sua prática”, estava claro que ele não me reconhecia como sujeito. Talvez me visse como um retrato de si mesmo antes da conversão, ou como a lembrança de alguém próximo, mas para eu me tornar digna de reconhecimento eu teria que me equiparar à um ideal pré-determinado pelos seus dogmas: evangélica, salva do “homossexualismo” e arrebatada pelo amor de Cristo. O homem não sabia que nem homossexual eu sou, e também não sabia se eu era cristã ou não, mas uma vez que eu estou defendendo direitos contrários aos seus ideais, estou fora do que é considerado aceitável.

Em contrapartida reconheço o direito à livre manifestação de pensamento e de crença², e como já apontei anteriormente em outro texto, sei o histórico de intolerância religiosa sofrida pelos segmentos evangélicos. Reconheço, inclusive, o direito daquele homem em gritar o amor de Deus em meio a um protesto. Entretanto, como defensora do Estado Laico, não reconheço o direito de uma religião gerir a minha vida, que é no que se resume os esforços da Bancada Evangélica. 

A luta pelos direitos humanos é árdua, cansativa e demorada. Mas o diálogo é imprescindível e, embora seja difícil, acredito que ele, aliado à informação e ao conhecimento, seja a maneira mais eficaz para que a alteridade aconteça de forma significativa.

¹ É preciso destacar que nem todos os católicos e nem todos os evangélicos entram aqui. Há vários cristãos de diferentes segmentos que estão na luta pelos direitos humanos e o Estado Laico.

² Dentro dos parâmetros do art. 5º da Constituição, que possui vários parágrafos que garantem o respeito à dignidade da pessoa humana acima de qualquer declaração.

 

Bibliografia:

HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

LEVINÁS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Editora Vozes, 1997.

 

* Ana Vitória é historiadora e ativista. Atualmente está cursando mestrado em História na Universidade de Brasília, no qual trabalha com as discussões acerca da secularização do casamento e do divórcio no Brasil oitocentista.

1 comment so far ↓

#1 Luiz Machado on 04.11.13 at 16:12

Excelente texto!
Só é possível compreender um elemento tão essencial à cultura brasileira numa perspectiva dialética que incorpore o quão constitutivo é o paradigma da transcendência religiosa no espaço da lusofonia sul-americana. Essa referência fulcral está posta na bela frase: “E quando uma entidade metafísica como Deus é chamada para a conversa, o ser humano, feito do pó, a este retorna.”
Parabéns!