Algumas considerações.

Por Ana Vitória Sampaio.

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No último dia 7/03 a sociedade brasileira foi testemunha de uma das maiores incoerências em seu cenário político. O Deputado Federal e Pastor Marco Feliciano (PSC-SP) assumiu o maior posto da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal. Como simpatizante declarada do movimento LGBT, do movimento negro e demais minorias sociais, fiquei estarrecida com tamanha contradição. O tema tem sido destaque nas redes sociais e mídia brasileira, e vozes contrárias e favoráveis à nomeação podem ser ouvidas. De um lado os que são contra lamentam a fragilidade de nossa política e o destino das minorias citadas. De outro os partidários do Pastor levantam as mãos aos céus, agradecendo a Deus pela providência divina.

Teoricamente não sou contrária à presença de religiosos na política, desde que a laicidade do Estado seja respeitada. Acredito que protestantes, católicos, espíritas, seguidores das religiões afro-brasileiras (alvo de grande preconceito religioso e racial) e demais crentes possam ter seus representantes para defender seus direitos enquanto grupos sociais. Atualmente ateísta e ex-protestante, posso dizer que fui vítima da intolerância religiosa nos dois casos. Em um deles por não crer em deus, que é a minha atual situação. E no outro por ter acreditado nele fora dos desígnios da Igreja Católica.

Sim, é verdade que protestantes também são vítimas de discriminação. Isso vem acontecendo no Brasil desde o século XIX, quando alguns políticos e intelectuais começaram a discutir a entrada de imigrantes europeus, sendo alguns de origem protestante, e encontraram grande resistência em relação a esses últimos. Afinal, no Império em que a religião oficial era a católica, sua população não poderia conviver com “hereges”. É verdade que a Constituição de 1824 tolerava a presença de outras religiões, contudo elas não poderiam ter seus templos e suas manifestações deveriam estar limitadas ao âmbito doméstico. Só que com o enfraquecimento do sistema escravocrata (o fim do tráfico negreiro, as leis do ventre livre e do sexagenário e, por fim, a abolição da escravidão), e sendo o país racista o suficiente para não incluir os negros como mão de obra livre, a necessidade pela força de trabalho estrangeira falou mais alto. Com isso os imigrantes começaram a vir em larga escala e entre eles estavam os protestantes. A Proclamação da República, a separação entre a Igreja e o Estado, e a evolução do direito à liberdade religiosa não foram suficientes para erradicar de vez o preconceito. Sem querer entrar no mérito da diferença entre as Igrejas tradicionais, pentecostais e neopentecostais, muitas vezes os protestantes ainda são estigmatizados.

Entretanto, a presença de representantes religiosos no parlamento deveria estar baseada na defesa de seus direitos enquanto grupo, e não no uso de mecanismos políticos visando a imposição dos seus valores ao resto da sociedade, que é o que a Bancada Evangélica vem fazendo. Um Estado Laico não deve favorecer uma religião em detrimento de outras. Nenhum dogma deve sobressair-se a ponto de excluir o resto da sociedade. Por isso que a luta pelo casamento civil homoafetivo (por exemplo) diz respeito à laicidade, à democracia e à cidadania. De forma bem sintética, se entendermos a cidadania como a igualdade de direitos (civis, sociais, políticos, trabalhistas, humanos, e me desculpem se esqueci de mais algum), os grupos minoritários atacados pelo Pastor (os negros e os LGBT) são justamente aqueles que ainda não possuem essa cidadania assegurada. Dentro do Congresso a CDHM seria um dos mecanismos que trabalharia para erradicar essa desigualdade, cujo destino agora é incerto. É possível afirmar que a indicação de Feliciano à presidência da CDHM faz parte de uma estratégia da bancada evangélica que vem se fortalecendo nos últimos anos e ganhando cada vez mais apoiadores. E assumo: uma estratégia bem pensada. Existe forma melhor de combater o inimigo do que atacá-lo, justamente, em suas bases?

Em sua obra O poder da identidade Manuel Castells propôs-se a elucidar sobre as variadas formas de fundamentalismo religioso, entre eles o fundamentalismo cristão, focalizando as articulações dos protestantes na política norte-americana. Apesar de ater-se à realidade de outro país, é impossível não ler os estudos de Castells sem identificar fenômeno semelhante no Brasil. Se a família é a base da sociedade como muitos afirmam, a manutenção da família nuclear patriarcal é a forma mais ancestral e bem sucedida de controlar um povo. Não é a toa que esse discurso está presente nas vozes dos líderes religiosos que se encontram na Câmara, que não só combatem o casamento civil homoafetivo, como também atacam as feministas “aborteiras”, a ausência do ensino religioso na rede pública, o Kit Anti-homofobia do MEC e o PLC 122.

Duvido muito que as metas da bancada evangélica estejam baseadas somente no desejo de espalhar a fé cristã por meio da política. Ao contrário de muitos fiéis de origem simples, sendo que muitos não tiveram acesso à educação de qualidade, incentivo ao pensamento crítico, quiçá uma alfabetização realmente efetiva, esses deputados e líderes religiosos não são nada ignorantes. Eles sabem muito bem o que estão fazendo, que o que dizem vai contra qualquer preceito de igualdade e liberdade, e se aproveitam do lugar de destaque em que se encontram para manipular os fiéis de seus templos que, às duras penas, ofertam até o dinheiro que não tem.