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De Martinho Garcez à Jean Wyllys: 113 anos de cidadania surrupiada pelo legislativo.

Por Ana Vitória Sampaio.

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Na recém-inaugurada República brasileira o senador por Sergipe, Martinho Garcez, apresentava o projeto de lei nº. 3 de 30 de julho de 1900, que visava instituir o divórcio no país. Uma vez que a República estava proclamada, que Igreja e Estado estavam separados, e que o casamento civil estava instituído, não havia motivos para que o divórcio não existisse em um país republicano e laico. O senador, inclusive, defendia a liberdade da Igreja em manter o vínculo indissolúvel, ao afirmar que “legislando para as consciencias, legislando em nome da fé, a igreja tinha o direito de estabelecer entre creaturas contingentes limitadas relações indissoluveis e eternas; o poder civil é que não tinha e não tem esse direito, porque é contra a natureza, contra a indole intima das relações contractuaes humanas que ellas não possam ser dissolvidas”¹, Da mesma forma, os defensores do casamento civil igualitário do século XXI não querem impor regras e, tampouco, legislar para as religiões, uma vez que a liberdade de culto continua protegida pela Constituição cidadã de 1988. A despeito de qualquer coisa, os LGBTs também não fazem a mínima questão de terem suas uniões abençoadas por líderes religiosos que só os condenam. Tal qual o divórcio, a luta pelo casamento civil igualitário também é a luta pelo Estado Laico, e de 1900 para cá pouca coisa mudou nos discursos do parlamento brasileiro.

No dia 15 de maio de 2013 o Conselho Nacional de Justiça instituiu o casamento civil para casais homoafetivos, publicando resolução que obriga os cartórios a realizarem o ato em todo o país.  O Brasil é o 15º país do mundo a legalizar o casamento gay, e tal conquista é, sem sombra de dúvidas, um GRANDE avanço à laicidade do estado e à cidadania. Contudo, nossas comemorações não podem ultrapassar o bom senso da realidade. O fato da legalização do casamento civil igualitário ter vindo do judiciário só prova o quão reacionário o Congresso Nacional ainda é, e quão ignorantes os nossos políticos ainda são na última coisa que deveriam ser: a própria política. Pois cidadania e, consequentemente, igualdade para TODAS as pessoas É uma questão política. Cidadania É igualdade de direitos – sociais, civis, políticos, trabalhistas, humanos, etc, e um Estado onde seus líderes lutam contra a implantação dessa igualdade não pode ser chamado de Estado democrático. Como exemplo temos as ações do Partido Social Cristão (PSC) que diz que “irá tomar medidas judiciais cabíveis para tentar derrubar a regulamentação do casamento gay pelo Conselho Nacional de Justiça”.

Embora poucos conheçam a história de Martinho Garcez, sendo sua voz quase que apagada do passado, é possível dizer que o senador foi, no mínimo, um espírito à frente do seu tempo no tocante à luta pelos direitos civis. Enquanto Rui Barbosa é reconhecido como autoridade intelectual da Primeira República, Garcez enfrentou o grande pensador por ter dito ao Senado que o divórcio era “poligamia sucessiva”, em outras palavras: uma putaria que não poderia ser validada pelo Estado. O senador também não temeu as reações de parlamentares representantes da Igreja, como o senador pelo Paraná – e também clérigo – Alberto Gonçalves, que teve papel de destaque na luta antidivorcista. E mais: Garcez não hesitou em apontar seus verdadeiros opositores ao dizer que, assim como o poeta inglês John Milton, que foi perseguido no século XVII por defender o divórcio, seu “maior, sinão unico inimigo, é o preconceito religioso ou theocratico” presente nas câmaras.

O que os Anais do Senado registraram é que não é de hoje que a cidadania vem sendo surrupiada dentro do legislativo, muitas vezes em nome de Deus. Garcez sabia que em pleno ano de 1900 não teria o seu projeto aprovado: “eu não tenho, Sr. Presidente, a pretenção de acreditar que meu projeto seja approvado este anno. Continuo, apenas, a campanha, já iniciada ha cerca de seis annos; outros mais valorosos virão depois em meu soccorro, e a tentativa, hoje repellida, será a verdade do amanhã”. Da mesma forma, os defensores do casamento civil igualitário sabem que, em pleno século XXI, se a decisão dependesse única e exclusivamente do Congresso Nacional, essas uniões não seriam validadas tão cedo, e continuariam condenadas à marginalidade de uma sociedade que só admite um tipo de sexualidade, pois como dizia Michel Foucault: “um único lugar da sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais. Ao que sobra só resta encobrir-se; o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa os discursos. E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente, vira anormal: receberá esse status e deverá pagar as sanções”².

Se o legislativo se incomoda com o judiciário tomando decisões, nós também. Não gostaríamos que juízes e ministros viessem ao socorro dos LGBTs. Gostaríamos de poder contar com o Congresso na defesa e implantação da cidadania, e é de comum acordo que esse é o ideal. Mas o que fazer se são os lobos que cuidam das ovelhas? Se fundamentalistas viram autoridade em direitos humanos? E se ainda somos acusados de intolerância religiosa ao fazer esses questionamentos?

Esforçar-se para que uma parcela da sociedade não tenha sua igualdade de direitos garantida é uma atitude fascista, e tais indivíduos não podem nunca se passar por baluartes defensores do Estado democrático. Sabemos muito bem o tipo de democracia que eles defendem.

Certas tradições políticas deveriam ser erradicadas, começando por essa: “não utilizar o santo nome de Deus em vão”. Porque dar a César o que é de César é essencial para o bom funcionamento da sociedade.

Referências:

¹ BRASIL. CONGRESSO NACIONAL. SENADO. Annaes do Senado. Sessão de 30 de julho de 1900.

² FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. V. 1, Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999.

É que Narciso acha feio o que não é espelho.

Por Jean Wyllys

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Depois de sair brevemente dos holofotes da imprensa por causa da PEC de Nazareno Fonteles (PT-PI), o presidente da Comissão de Direitos e Minorias da Câmara dos Deputados encontrou um meio de tentar atrair novamente, para si, a atenção da mídia: colocou na pauta da comissão os projetos de legalização de “cura da homossexualidade” e o da “criminalização da heterofobia” – ambos contrários à cidadania de lésbicas, gays, travestis e transsexuals. E está conseguindo. Não só parte da imprensa voltou a lhe dar atenção por conta disso, como também muitos ativistas voltaram a colocar o nome do presidente da CDHM em circulação na internet, atendendo a seus apelos narcisistas.

Alguns desses ativistas não apenas caíram na armadilha do pastor como, num arroubo de indignação histérica, também começaram a tratar a possível aprovação dos projetos na CDHM como algo que os converteriam em leis que passariam a vigorar no dia seguinte (ou seja, começaram a fazer tudo o que o pastor esperava para poder jogar para sua platéia homofóbica). Ora, não é assim que a banda toca.   Em primeiro lugar, se aprovados na CDHM (e serão porque os fundamentalistas religiosos, lá na comissão, são ampla maioria e têm quorum, mesmo com a saída dos cinco deputados verdadeiramente comprometidos com os Direitos Humanos e com as minorias), se aprovados aí, os projetos serão encaminhados para outras comissões onde eles jamais serão aprovados e jamais chegarão a plenário. Em segundo lugar, a CDHM  que aprovará esses dois projetos bizarros – um deles, um deboche descarado à democracia – tem legalidade, mas não tem legitimidade. O que isso quer dizer? Quer dizer que ela não é reconhecida nem respeitada por nenhum defensor dos Direitos Humanos ou organização dedicada a estes no Brasil; quer dizer que qualquer proposição legislativa que ela aprove não será levada a sério (nem mesmo por boa parte dos deputados daquela casa).

Sendo assim, não há razão para histeria. E essa atitude do presidente da CDHM  – essa de pôr em pauta dois projetos bizarros por uma comissão desacredita e sem legitimidade – só deve ser ridicularizada. A nossa saída dessa comissão foi a decisão mais acertada (aliás, eu defendi essa posição desde o primeiro momento em que ela foi tomada por uma maioria fundamentalista religiosa numa manobra política!). Acertada porque retiramos, dela, a legitimidade, já que não endossaríamos suas decisões com nossa inevitável derrota precedida de debate em que serviríamos tão somente de trampolim para o discurso reacionário e homofóbico da maioria, mas também porque, com a nossa saída, pudemos criar e garantir outros espaços políticos e legislativos para tocarmos a pauta dos Direitos Humanos de minorias. A nossa decisão foi tão acertada que o deputado João Campos, num arroubo de desespero, protocolou pedido de anulação desses espaços ao presidente da Câmara dos Deputados e o deputado Roberto de Lucena foi à tribuna pedir a nossa volta.

Enquanto a CDHM fazia audiência a porta fechadas para uma claque evangélica, a Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos Humanos recebia, a portas escancaradas e com a presença de movimentos sociais e outros defensores dos DHs, o relatório do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs e o do Projeto Monitorameto dos DHs no Brasil sobre violência na América Latina.   Estava clara a diferença ente nós e eles. Quem trabalha de verdade por direitos humanos não pode perder tempo com os caprichos de um narcisista irresponsável nem com o descaso de fundamentalistas com a dor de minorias estigmatizadas e sem direitos fundamentais garantidos. A nossa decisão foi acertada e agora os DHs de minorias contam com espaços legislativos e políticos para serem defendidos e promovidos.

Cuidado com as armadilhas!

Originalmente publicado aqui

OAB e entidades sociais denunciam Feliciano e Bolsonaro por campanha do ódio

Porque coisa boa também merece ser anunciada! O nosso muito obrigada à todos os deputados e deputadas que estão na Frente Parlamentar de Direitos Humanos, às entidades da sociedade civil, à OAB e à todos que não fecharam os ouvidos aos apelos da população brasileira, sobretudo aqueles que mais precisam de atenção e segurança! Juntos somos mais fortes!

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Liderando um grupo de mais de vinte entidades ligadas aos direitos humanos, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) enviará, na próxima semana, representação ao presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves, contra os parlamentares Marco Feliciano (PSC-SP) e Jair Bolsonaro (PP-RJ). A entidade quer que a Corregedoria da Câmara puna os dois por quebra de decoro parlamentar em virtude de divulgação de vídeos considerados difamatórios.

Em um dos vídeos, Bolsonaro teria editado a fala de um professor do Distrito Federal em audiências na Câmara para acusá-lo de pedofilia e utiliza imagens de deputados a favor da causa homossexual para dizer que eles são contrários à família.

Para o presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB, Wadih Damous, essas campanhas de ódio representam o rebaixamento da política brasileira. “Pensar que tais absurdos partem de representantes do Estado, das Estruturas do Congresso Nacional, é algo inimaginável e não podemos ficar omissos. Direitos Humanos não se loteia e não se barganha”, disse. Indignado com os relatos feitos por parlamentares e defensores dos direitos humanos durante reunião na sede da entidade, Damous garantiu que “a Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB será protagonista no enfrentamento a esse tipo de atentado à dignidade humana”.

A campanha difamatória vem sendo difundida na internet contra os deputados Jean Wyllys (PSOL-RJ), Erika Kokay (PT-DF), Domingos Dutra (PT-MA) e os ativistas Tatiana Lionço e Cristiano Lucas Ferreira, ambos do Distrito Federal. Na reunião com a CNDH da entidade dos advogados estiveram presentes, além dos deputados acusados na campanha difamatória, representantes da secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República, do Conselho Federal de Psicologia, e ativistas dos movimentos indígena, de mulheres, da população negra, do povo de terreiro e LGBT.

O deputado Jean Wyllys considerou o encontro extremamente importante para levar para o centro das discussões um tema que é normalmente tratado como um tema menor da política e relegado à periferia aos assuntos de interesse da OAB. Segundo ele, a Frente em Defesa dos Direitos Humanos e Minorias vem fazendo o possível para que os responsáveis pela campanha difamatória não permaneçam impunes. No entanto, o assunto precisa receber uma atenção maior do governo federal, admitiu o parlamentar”

“Estamos falando de um ataque criminoso de parlamentares contra cidadãos brasileiros”, disse o parlamentar. “Eu fico muito feliz com essa decisão da OAB porque o sentimento de desamparo que esses ativistas estão sentindo eu também experimentei. Só que eu tenho uma vantagem: sou deputado federal e tenho minimamente uma estrutura que pode servir de defesa pra mim”.

Fonte: Jornal do Brasil

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Nossos guerreiros Tatiana Lionço e Cristiano Lucas com deputados da Frente Parlamentar de Direitos Humanos e advogados da OAB. Justiça será feita!

Obrigado, Feliciano!

Por Eduardo d´Albergaria*. Texto originalmente publicado no site da Cia Revolucionária Triângulo Rosa

 

Há pelo menos 3 décadas, o fundamentalismo religioso vem ganhando espaço no Brasil de forma intensa e silenciosa. Conquistando lugares no parlamento, em cargos executivos, canais de televisão, os fundamentalistas transformaram suas empresas em verdadeiros impérios.

Atuam, sobretudo, nas periferias urbanas, praticamente abandonadas pela Igreja Católica, que até então promovia, nestas áreas, a Teologia da Libertação – isolada e perseguida pela Cúria Romana, que discordava de sua “opção pelos pobres” e pelo seu engajamento nas lutas por direitos.

Os fundamentalistas encontraram terreno fértil para sua pregação: legiões de “sobrantes”, acossados pelo desemprego, pela invisibilidade, pelo terror da violência urbana e policial, ávidos por discursos messiânicos e salvacionistas. No meio da barbárie  e na ausência de projetos coletivos, só mesmo a fé se mostra como caminho de saída do desespero.

Durante a ascensão do fundamentalismo religioso, uma marca sempre esteve presente nos discursos e pregações: a escolha de um inimigo a ser combatido. A velha estratégia de se criar um inimigo fora do grupo, para dar sentido a sua própria existência: uma “batalha espiritual” que divide o mundo entre o bem e o mal.

As primeiras vítimas dos discursos de ódio do fundamentalismo religioso foram as religiões de matriz africana, depreciadas como “rituais macabros”, “manifestações demoníacas”. O(A)s seguidore(a)s do Candomblé e da Umbanda não contaram com a solidariedade da sociedade brasileira. Sozinho(a)s tiveram poucas condições para resistir ao verdadeiro linchamento público a que foram submetido(a)s. Desorganizad@s politicamente, minoritári@s na sociedade e subalternizad@s por um preconceito que, de tão avassalador , sequer se reconhece sua existência: o racismo.

Essa fragilidade das religiões afro tem origem histórica.  Vítimas de uma abolição tutelada, os praticantes do candomblé e da umbanda tiveram, durante muito tempo, sua religiosidade considerada crime e só conseguiam manter abertos seus terreiros caso se  submetessem à proteção de um coronel que trocasse liberdade religiosa por votos.

Curiosamente, os mesmos fundamentalistas que os atacavam (e atacam) incorporam rituais em suas liturgias nos mesmos padrões das religiões de matriz africana. O que levou Vagner Gonçalves da Silva, professor de antropologia da USP, a afirmar: ”Combatem-se essas religiões [afro] para monopolizar seus principais bens no mercado religioso, as mediações mágicas e a experiência do transe religioso, transformando-os em valor interno do sistema neopentecostal.”

Nos últimos anos, os fundamentalistas religiosos resolveram intensificar sua campanha contra outro “inimigo” : os sexodivers@s – gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis e todas as pessoas que vivem relações não procriativas (assim, também são rechaçados, em menor intensidade, os heterossexuais que realizam sexo anal e, em alguns casos, até o oral).

Utilizando-se de uma leitura biblica datada, os fundamentalistas controem um moralismo seletivo – não incorporam todas as proibições bíblicas: como, por exemplo, a de cortar o cabelo e a de comer frutos do mar …

Não à toa, os fundamentalistas escolheram este momento para intensificar seus ataques à comunidade sexodiversa: a governabilidade conservadora dos governos Lula/Dilma – que unificou, na mesma base de apoio, parlamentares “progressistas” e parlamentares fundamentalistas – fez com que muitos dos tradicionais aliados da diversidade sexual – parlamentares do PT, PC do B, PSB – se omitissem na disputa contra o fundamentalismo religioso, agora seu aliado na sustentação de governo. Resultado: deputados-pastores transformaram o plenário do Congresso e programas de TV em púlpitos de sua pregação de ódio e encontraram abandonado o cenário de disputa de valores. Some-se a isso que a resistência não tem vindo de fora do parlamento: o movimento LGBT hegemônico é hoje composto por ONGs que se encontram totalmente tragadas pela dependência ao Estado e reféns do Governismo.

Enquanto isso, a comunidade sexodiversa está totalmente domesticada pelo mercado Pink. A maior vitória do neoliberalismo sobre a comunidade sexodiversa foi consolidar a ideia de que “chique é consumir”, que se engajar numa causa social e refletir sobre o mundo são coisas “cafonas” ou “pagar mico”.

Na esteira do medo e da culpa, os fundamentalistas tentam abrir um novo e lucrativo mercado: o da cura pela “Psicologia Cristã”. Como as normas do Conselho Nacional de Psicologia não reconhecem esta “reorientação de desejo”, os fundamentalistas tentam agora, por meio de sua bancada no Congresso Nacional, fazer uma intervenção no Conselho de Psicologia para mudar as normas da profissão.       Nessa sucessão de “batalhas espirituais”, os fundamentalistas também miraram os povos indígenas. Ressuscitando a velha retórica “missionária” de um povo a ser salvo pela “palavra cristã”, construíram relações bastante complicadas com os povos indígenas. Chegaram até mesmo a propor, no Congresso Nacional, um projeto que estabelece a visão de que os povos indígenas são infanticidas (até postaram no youtube um filme falsamente documental). Não por acaso, simultaneamente, abriram um vasto mercado de captação de recursos financeiros explorando adoções de crianças indígenas e o desconhecimento por estrangeiros da  realidade dos nossos mais de 220 povos nativos.

Também os usuários de substâncias psicoativas  foram alvo do proselitismo dos fundamentalistas. Na esteira da falência da “guerra às drogas” e na ausência de uma política de educação e saúde mental que construa a autonomia dos sujeitos frente a estas substâncias, os fundamentalistas multiplicaram outro mercado lucrativo: o da cura pela conversão. Em todo o país, “comunidades terapêuticas” recebem recursos públicos para sustentarem seu proselitismo religioso junto aos dependentes químicos.

Mas por que os fundamentalistas escolheram as religiões afro, @s sexodivers@s e os povos indígenas como seus inimigos? Por que não escolheram a religião católica, ainda majoritária no país e com a qual eles disputam espaço?

Uma marca dos fundamentalistas é a covardia: eles só enfrentam inimigos muito mais frágeis que eles. Do total da população brasileira, 1,5% é de seguidores das religiões afro, 5 a 10%  se declaram homossexuais de %, e menos de 900 mil brasileir@s se declaram indígenas. Além de minoritários, esses grupos, têm sido historicamente estigmatizados e inferiorizados.

Certamente, tão cedo, não veremos uma Santa ser chutada novamente por um pastor fundamentalista, mas terreiros seguem sendo violados Brasil a fora sem que isso cause grandes comoções.

O caminho da ascensão fundamentalista vem sendo trilhado sem qualquer resistência: exploração da fé de um povo dilacerado; constituição de um moderno curral eleitoral – transformando Cristo em Cabo Eleitoral –; influência crescente no Parlamento e nos executivos; poder crescente no oligopólio brasileiro de informação; comunidades terapêuticas, empresas de shows, editoras, isenção de impostos…

Uma trajetória que dilacera, aos poucos, nosso nunca integralmente conquistado Estado Laico: leis que, de forma crescente, estabelecem os valores dos fundamentalistas como obrigatórios para o restante da sociedade, proselitismo religioso nas escolas públicas, transferência de dinheiro público para subsidiar comunidades terapêuticas, dinheiro público para marchas para “Jesus”, dinheiro público para parques gospel…

Até que os fundamentalistas resolveram dar um passo “maior que suas pernas”: ter seu quadro político mais extremista como presidente da Comissão de Direitos Humanos.       Marco Feliciano é uma caricatura pesada demais para a sociedade brasileira. Além dos “tradicionais” ataques aos sexodivers@s, candomblecistas, umbandistas – que ele chegou até a pregar pelos “sepultamentos” –, o deputado-pastor vai além: ataca todos(as) os(as) negros(as) – classificando-os(as) como “amaldiçoados(as)” e resgatando teologia de tempos de apartheid – e as mulheres. que, e segundo ele, deveriam ser subalternizadas pelos homens.

O sectarismo de Feliciano alcança até mesmo os seguidores do catolicismo, que ele chamou de “religião morta e fajuta” e responsabilizou os católicos carismáticos pelo “avivamentos de satanás”. O deputado-pastor ainda vai mais longe:  na mercantilização da fé, promete milagres em troca de senhas de cartões de crédito e vende carnê da casa própria em plena sessão de transe espiritual. Faz uso de seu mandato público para fins privados: contrata pastores, produtores de vídeo e advogados para suas empresas. Demonstra total incapacidade para lidar com o debate democrático, já que, segundo ele, seus adversários seriam Satanás.

Feliciano é uma figura tão indefensável que seus pares (incluída a revista Veja), para protegê-lo, precisam construir as seguintes estratégias tangenciais, entre outras.

1 – Trasformam o debate em uma briga pessoal entre Jean Wyllys e Feliciano. Tod@s @s deputad@s historicamente comprometidos com os Direitos Humanos são contrários a que um homofóbico racista esteja à frente da Comissão de Direitos Humanos. Por que só personificar em Jean Wyllys? Novamente, a costumeira covardia dos fundamentalistas: eles sabem que ainda há muita rejeição na sociedade ao fato de um homossexual ocupar um cargo público.

2 – Afirmam que é uma perseguição aos cristãos. Não é verdade: é crescente o número de cristãos que dizem não a Marco Feliciano. Mais de 150 pastores e lideranças evangélicas assinaram um manifesto em que solicitam a substituição da presidência da Comissão de Direitos Humanos. Esse pedido também foi feito pela Comissão Justiça e Paz da Cnbb e pelo Conselho de Igrejas Cristãs – que congrega a Igreja Católica, Luterana, Presbiteriana, Metodista e Anglicana.

3 – Tentam deslegitimar os movimentos contra Feliciano dizendo que seria mais importante lutar contra Renan e os mensaleiros. Ora, em quem os senadores fundamentalistas votaram para ocupar a presidência do Senado? E, entre os mensaleiros, não estava um dos parlamentares fundamentalistas, Bispo Rodrigues? Portanto, não há sentido em se relativizar uma luta fundamental, ainda mais quando isso é proposto por alguém que não constrói luta cidadã alguma…

Temos muito a “agradecer” a Marco Feliciano por provocar o surgimento de um movimento amplo e plural em defesa do Estado Laico. A sociedade Brasileira parece ter percebido finalmente o risco do Fundamentalismo Religioso.

A disputa em curso é muito maior do que a de quem irá presidir uma Comissão do Congresso.

A luta para derrubar Marco Feliciano é a materialização do confronto entre as posições em defesa  do Estado Laico e o Fundamentalismo Religioso. O que está em jogo é a opinião da sociedade sobre as liberdades individuais e religiosas, sobre a laicidade do Estado e sobre o perigo fascista do fundamentalismo religioso.

Para derrotar o fundamentalismo, não podemos subestimar seu poder. Seus quadros políticos são preparados e exibem grande capacidade de oratória e convencimento. Mas também seria um erro superestimar sua força. Entendê-los como todo-poderosos que não podem ser derrotados, criaria um sentimento paralisante na sociedade, que pouco contribuiria para o enfrentamento.

Então é importante conhecer, entre outros, os seguintes pontos de fragilidade dos fundamentalistas.

1 – O debate sobre a imensa fortuna dos pastores (inclusive registrada pela revista “Forbes”) os deixa muito fragilizados:  não há “teologia da prosperidade” que explique que essa prosperidade só chegue para pastores, enquanto seus rebanhos seguem massacrados pelo capitalismo selvagem.

2 – Não é tão fácil quanto eles dizem mobilizar sua base social para uma disputa política aberta. Todas as vezes em que eles mobilizaram multidões foi em torno de temas religiosos mais gerais – as marchas são “para Jesus”, a rejeição ao PLC 122 entra como um tema “acessório”. Seu rebanho é composto de um público domesticado pelos poderes constituídos. Quem já o viu presente em um embate no Congresso sente dó daquelas pessoas que ficam acuadas por não entenderem plenamente o que está acontecendo. É verdade que, em tese, os fundamentalistas podem arrastar multidões para o embate público, mas seria uma manobra arriscada tirar essa gente dos currais do fundamentalismo e jogá-la no lugar do contraditório. Eles sabem que os argumentos deles só funcionam sem um contraponto de qualidade.

3 – Felizmente, eles ainda não têm um projeto de poder comum. Cada um tem seu próprio projeto de poder, e os projetos, muitas vezes, se chocam. Feliciano e outros estão jogando para nichos extremistas, ao passo que parlamentares fundamentalistas como Marcelo Crivela sonham em ocupar um cargo majoritário e, para isso, precisam ser mais “amplos”. Um acirramento de conflito, no patamar realizado por Feliciano, é ruim para os planos deles. E, mesmo dentro do mundo religioso, os fundamentalistas disputam territórios de forma bem pouco “elegante”: se hoje Malafaia e Feliciano se unem por senso de sobrevivência, até pouco tempo se matavam pelo controle da Assembleia de Deus.

Embora os fundamentalistas não compartilhem um projeto de poder, eles agem segundo uma lógica política comum, o que dá lastro a uma articulação importante dentro do parlamento e à aliança recente para defender Feliciano. O perigo é que eles tenham tanto poder daqui a alguns anos, que comecem a aventar um projeto de poder comum.

4 – Os fundamentalistas dependem dos evangélicos conservadores não sectários para terem legitimidade  ao falar em nome do “povo evangélico”. No entanto, as lideranças conservadoras não confiam nos propósitos dos mercadores da fé, que, por isso, não podem ir longe demais nos embates, sob o risco de ficarem isolados no próprio mundo evangélico.

5 – Dentro do movimento evangélico, há setores progressistas e inclusivos, hoje muito isolados, e que precisam ser mais visualizados para demonstrar à sociedade que existe sim evangélicos que não são intolerantes.

É pensar essas contradições que dá caminhos mais firmes para o movimento pelo Estado Laico e contra Feliciano.

Dificilmente Feliciano sairá da presidência da Comissão. A não ser que se torne insuportável a pressão institucional crescente:  de seu partido; da Presidência da Câmara, que já se posicionou pela inviabilidade de Marco Feliciano continuar à frente da CDH; da Comissão de Ética, que, diante de uma representação do Psol, julgará o uso do mandato para fins privados.

Feliciano sabe muito bem que, a cada dia que ficar à frente da Comissão, ele ganhará mais votos de um eleitorado extremista.

Ainda que não seja fácil derrubar Feliciano, é fundamental que o movimento siga combativo:  que, a cada dia, os jovens tomem os corredores do Congresso e digam: “Feliciano não nos representa”, que, a cada dia que a CDH se reunir a portas fechadas por incapacidade de sua atual direção de dialogar com os movimentos sociais, a cada dia que uma audiência  se inviabilizar porque os convidados se negam a estar num espaço liderado por um fundamentalista, crescerá, na sociedade, a consciência do perigo do fundamentalismo religioso.

A cada dia que Feliciano fica à frente da Comissão,  cresce a Frente pelo Estado Laico , que já envolve artistas, lideranças religiosas, movimentos sociais, parlamentares e milhares de ativistas nas ruas e nas redes.

Por isso sigamos insistentes e persistentes ….o tempo que for necessário!

E sejamos “justos”: “Obrigado, Feliciano, pelo nosso fortalecimento para combater o fundamentalismo. Nunca estivemos tão fortes e unidos. Obrigado.

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* Eduardo d´Albergaria (Duda) é Cientista Social, Especialista em Políticas Públicas (MPOG) e militante da Cia Revolucionária Triângulo Rosa.

Ato em defesa do Estado laico!

Dia 8 de abril, segunda-feira, às 10 horas, haverá uma sessão solene na Câmara dos Deputados em homenagem à igreja evangélica Assembleia de Deus. Também estaremos lá em defesa do Estado laico!

Ato pelo Estado Laico

 

 

 

II Vígilia pelo Estado Laico e Direitos Humanos 01/04

Venha para a nossa vigília! Traga velas, cartazes e mensagens de paz e esperança. O Estado Laico merece a nossa mobilização! Mais detalhes no flyer:

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Flyer por Letícia Fialho.

Algumas considerações.

Por Ana Vitória Sampaio.

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No último dia 7/03 a sociedade brasileira foi testemunha de uma das maiores incoerências em seu cenário político. O Deputado Federal e Pastor Marco Feliciano (PSC-SP) assumiu o maior posto da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal. Como simpatizante declarada do movimento LGBT, do movimento negro e demais minorias sociais, fiquei estarrecida com tamanha contradição. O tema tem sido destaque nas redes sociais e mídia brasileira, e vozes contrárias e favoráveis à nomeação podem ser ouvidas. De um lado os que são contra lamentam a fragilidade de nossa política e o destino das minorias citadas. De outro os partidários do Pastor levantam as mãos aos céus, agradecendo a Deus pela providência divina.

Teoricamente não sou contrária à presença de religiosos na política, desde que a laicidade do Estado seja respeitada. Acredito que protestantes, católicos, espíritas, seguidores das religiões afro-brasileiras (alvo de grande preconceito religioso e racial) e demais crentes possam ter seus representantes para defender seus direitos enquanto grupos sociais. Atualmente ateísta e ex-protestante, posso dizer que fui vítima da intolerância religiosa nos dois casos. Em um deles por não crer em deus, que é a minha atual situação. E no outro por ter acreditado nele fora dos desígnios da Igreja Católica.

Sim, é verdade que protestantes também são vítimas de discriminação. Isso vem acontecendo no Brasil desde o século XIX, quando alguns políticos e intelectuais começaram a discutir a entrada de imigrantes europeus, sendo alguns de origem protestante, e encontraram grande resistência em relação a esses últimos. Afinal, no Império em que a religião oficial era a católica, sua população não poderia conviver com “hereges”. É verdade que a Constituição de 1824 tolerava a presença de outras religiões, contudo elas não poderiam ter seus templos e suas manifestações deveriam estar limitadas ao âmbito doméstico. Só que com o enfraquecimento do sistema escravocrata (o fim do tráfico negreiro, as leis do ventre livre e do sexagenário e, por fim, a abolição da escravidão), e sendo o país racista o suficiente para não incluir os negros como mão de obra livre, a necessidade pela força de trabalho estrangeira falou mais alto. Com isso os imigrantes começaram a vir em larga escala e entre eles estavam os protestantes. A Proclamação da República, a separação entre a Igreja e o Estado, e a evolução do direito à liberdade religiosa não foram suficientes para erradicar de vez o preconceito. Sem querer entrar no mérito da diferença entre as Igrejas tradicionais, pentecostais e neopentecostais, muitas vezes os protestantes ainda são estigmatizados.

Entretanto, a presença de representantes religiosos no parlamento deveria estar baseada na defesa de seus direitos enquanto grupo, e não no uso de mecanismos políticos visando a imposição dos seus valores ao resto da sociedade, que é o que a Bancada Evangélica vem fazendo. Um Estado Laico não deve favorecer uma religião em detrimento de outras. Nenhum dogma deve sobressair-se a ponto de excluir o resto da sociedade. Por isso que a luta pelo casamento civil homoafetivo (por exemplo) diz respeito à laicidade, à democracia e à cidadania. De forma bem sintética, se entendermos a cidadania como a igualdade de direitos (civis, sociais, políticos, trabalhistas, humanos, e me desculpem se esqueci de mais algum), os grupos minoritários atacados pelo Pastor (os negros e os LGBT) são justamente aqueles que ainda não possuem essa cidadania assegurada. Dentro do Congresso a CDHM seria um dos mecanismos que trabalharia para erradicar essa desigualdade, cujo destino agora é incerto. É possível afirmar que a indicação de Feliciano à presidência da CDHM faz parte de uma estratégia da bancada evangélica que vem se fortalecendo nos últimos anos e ganhando cada vez mais apoiadores. E assumo: uma estratégia bem pensada. Existe forma melhor de combater o inimigo do que atacá-lo, justamente, em suas bases?

Em sua obra O poder da identidade Manuel Castells propôs-se a elucidar sobre as variadas formas de fundamentalismo religioso, entre eles o fundamentalismo cristão, focalizando as articulações dos protestantes na política norte-americana. Apesar de ater-se à realidade de outro país, é impossível não ler os estudos de Castells sem identificar fenômeno semelhante no Brasil. Se a família é a base da sociedade como muitos afirmam, a manutenção da família nuclear patriarcal é a forma mais ancestral e bem sucedida de controlar um povo. Não é a toa que esse discurso está presente nas vozes dos líderes religiosos que se encontram na Câmara, que não só combatem o casamento civil homoafetivo, como também atacam as feministas “aborteiras”, a ausência do ensino religioso na rede pública, o Kit Anti-homofobia do MEC e o PLC 122.

Duvido muito que as metas da bancada evangélica estejam baseadas somente no desejo de espalhar a fé cristã por meio da política. Ao contrário de muitos fiéis de origem simples, sendo que muitos não tiveram acesso à educação de qualidade, incentivo ao pensamento crítico, quiçá uma alfabetização realmente efetiva, esses deputados e líderes religiosos não são nada ignorantes. Eles sabem muito bem o que estão fazendo, que o que dizem vai contra qualquer preceito de igualdade e liberdade, e se aproveitam do lugar de destaque em que se encontram para manipular os fiéis de seus templos que, às duras penas, ofertam até o dinheiro que não tem.